quinta-feira, 10 de março de 2011

Seita revisora

«Quer você dizer na sua que a seita revisora gosta do que faz, Tão longe não ouso ir, depende da vocação, e revisor de vocação é fenómeno desconhecido, no entanto, o que parece demonstrado é que, no mais secreto das nossas almas secretas, nós, revisores, somos voluptuosos.»

«Diga-me cá, os outros sinais também levam nomes latinos, como o deleatur, Se os levam, ou levaram, não sei, não estou habilitado, talvez fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam, Na noite dos tempos, Desculpar-me-á se o contradigo, mas eu não empregaria a frase, Calculo que por ser um lugar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios, tudo pode aparecer como novidade, a questão está só em saber manejar adequadamente as palavras que estejam antes e depois...»

«Considere, senhor doutor, a vida quotidiana dos revisores, pense na tragédia de terem de ler uma vez, duas, três ou quatro, ou cinco vezes, livros que, provavelmente, nem uma só vez o mereceriam, Fique registado que não fui eu quem proferiu tão gravosas palavras, conheço muito bem o meu lugar na sociedade das letras, voluptuoso, sim, confesso-o, mas respeitador, Não vejo onde esteja essa terribilidade, aliás parecia-me a conclusão óbvia da sua frase, aquela eloquente suspensão, apesar de não se lhe verem as reticências, Se quer saber, vá aos autores, provoque-os com o meio dito meu e o meio dito seu, e verá como eles lhe respondem com o aplaudido apólogo de Apeles e o sapateiro, quando o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois, tendo verificado que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a anatomia do joelho, Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica, Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro do quintal, Neste caso, o Apeles tinha razão, Talvez, mas só enquanto não viesse examinar a pintura um sábio anatomista, Você é definitivamente céptico, Todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a mais comum entre os humanos, enfim, só o revisor aprendeu que o trabalho de emendar é o único que nunca se acabará no mundo...»

«Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o revisor.»


SARAMAGO, José, História do Cerco de Lisboa. Lisboa: Caminho, 1989.

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